Acessibilidade arquitetônica é lei
“O espaço deve ser adaptado às pessoas, e não as pessoas é que devem se adaptar a ele”. A arquiteta e urbanista Liane Lautert Etcheverry* é categórica ao defender o desenho universal como um ato de responsabilidade. Ela desenvolve projetos e pesquisas em Arquitetura livre de barreiras e acessibilidade plena há 30 anos, verificando o descaso geral em relação ao tema e os avanços de leis e normas técnicas, ainda que a passos lentos. Contudo, a regulamentação da chamada Lei Brasileira de Inclusão, em março deste ano, a deixa esperançosa, especialmente se representar maior fiscalização dos órgãos públicos. Afinal, se antes era apenas uma questão de bom senso, de respeito e de conscientização, agora é uma obrigação.
AAI Digital – Em março deste ano, o Decreto Nº 9.296 regulamentou o art. 45 da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 , que torna obrigatória a observância da NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. O que mudou a partir de então?
Arq. Liane Lautert Etcheverry – Há uma ampla legislação sobre acessibilidade. As leis e as normas técnicas evoluíram bastante, mas isso ainda não é garantia de inclusão social da pessoa com deficiência, apesar deste decreto e Lei 13.146 (Lei Brasileira de Inclusão) e da NBR 9050/2015. Ainda temos uma infinidade de edifícios públicos e privados onde é flagrante o desrespeito às leis, e sem qualquer perspectiva de melhoria no curto prazo. Em atividades comerciais, tem havido uma fiscalização do Ministério do Trabalho relativa à inclusão (número de empregados) e itens de acessibilidade. Mas ainda há muito a ser feito em relação à fiscalização, pressionando para que haja uma melhoria quanto à inclusão e acessibilidade arquitetônica.
AAI Digital – Qual a importância dessa regulamentação para a garantia da acessibilidade?
Arq. Liane – Da maior importância: “Promover a acessibilidade é um ato de responsabilidade social e legal, garantindo o direito de ir e vir a todas às pessoas, com segurança e autonomia.”
AAI Digital – Já são décadas de debates e tentativas de garantir acessibilidade a todos. Já se passaram 18 anos da publicação do Decreto 5.296, que regulamentou as leis 10.048, de 8 de novembro de 2000, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000. E ainda estamos longe de garantir espaços com acessibilidade plena das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. Por que isso acontece?
Arq. Liane – Por total falta de respeito e conscientização! Infelizmente, são poucos os que se preocupam com o item acessibilidade e o atendimento aos preceitos do que se chama ‘desenho universal’. Já em 1985 fizemos estudo de acessibilidade arquitetônica para as primeiras 15 Estações da Trensurb, na época de pré-inauguração, e não foi executado até hoje. A lei deveria ser mais rígida, impositiva e, principalmente, haver fiscalização atuante e permanente. Não podemos nos esquecer de que, com o aumento da expectativa de vida (hoje, no Brasil, ao redor de 72 anos; e, para 2050, ao redor de 81 anos), o número de brasileiros com idade acima de 65 anos deverá quadruplicar. A expectativa é de 58 milhões de brasileiros com idade acima de 65 anos até 2060. Como atender essa população no que se refere à acessibilidade plena? Sem falar de outros itens, tais como serviços de saúde e lazer. Se as edificações não estiverem plenamente adaptadas, com acessibilidade total, os problemas serão ainda maiores.
AAI Digital – Em relação aos espaços públicos, as calçadas representam um grande desafio, não só para cadeirantes, mas também para crianças, idosos e para quem passeia com um carrinho de bebê, por exemplo. O que é preciso para garantir espaços de qualidade e acessíveis a todas as pessoas? Quais os desafios?
Arq. Liane – Os desafios são enormes. As calçadas oferecem um risco constante. A maioria das pessoas idosas tem medo de cair ao caminhar nestas calçadas, pois as quedas ocasionam riscos graves de lesões, além de consequências emocionais graves. As praças são espaços públicos por excelência, mas estão mal equipadas ou são precárias e não oferecem segurança, comprometendo o
lazer de todas as pessoas, atingindo diretamente as crianças, as pessoas com deficiência e as da ‘Terceira idade’. Cabe ao Poder Público exigir e fiscalizar os espaços públicos.
AAI Digital – O piso tátil vem ganhando cada vez mais opções, em relação a materiais e cores, e ainda gera controvérsias. Qual a sua avaliação sobre os materiais existentes hoje no mercado e a aplicação deles nos projetos?
Arq. Liane – O mercado vem aumentando a oferta de piso tátil direcional e de alerta, uma vez que a demanda está exigindo cada vez mais seu uso. As normas NBR 9050/2015 e NBR 16537 (com Versão Corrigida 2:2018) estabelecem critérios e parâmetros técnicos para a instalação destes pisos no que diz respeito a sua utilização, determinando cores contrastantes ao piso existente e diferença de textura, por isso esta grande variedade de cores e de materiais nos pisos táteis.
AAI Digital – Em relação aos deficientes visuais, o que mais deve ser contemplado no projeto, além do piso tátil?
Arq. Liane – As pessoas com deficiência visual têm dificuldades de locomoção em situações espaciais críticas para sua orientação, grandes ambientes, excesso de informações ou ausência de informações sonoras. A sinalização tátil no piso compreende alertar e direcionar através da percepção por meio da bengala de rastreamento ou de visão residual. Daí a importância de piso tátil com cor contrastante e textura diferenciada.
É necessário, sempre, dar uma referência que conduza a pessoa, através do piso direcional, até um mapa tátil e traçar uma rota acessível, livre de obstáculos, além de recursos sonoros, como em elevadores, informando situação da porta e de localização.
AAI Digital – Em espaços internos, o que é preciso prever?
Arq. Liane – Principalmente, entender que o espaço deve ser adaptado, e não a pessoa é que deve se adaptar a ele. Para permitir que todas as pessoas usem o espaço e nele circulem, os ambientes devem ter: circulações amplas e livres de obstáculos; pisos firmes, regulares e antiderrapantes; portas com largura mínima de 80 centímetros; banheiros amplos e com barras de apoio; escadas e rampas seguras; corrimãos em escadas e rampas em ambos os lados; iluminação adequada; acessos livres de degraus; dispositivos de comando e iluminação em alturas compatíveis.
AAI Digital – É fato ou mito o entendimento de que as edificações projetadas conforme os critérios de acessibilidade têm custo maior do que as tradicionais?
Arq. Liane – Eu sempre comento que é muito mais fácil e econômico adequar um projeto do que adaptar um espaço existente, às vezes, sem solução no que diz respeito à acessibilidade. Então, um projeto bem elaborado, respeitando as leis e normas, respeitando a diversidade humana, garantindo segurança, conforto e autonomia, não vai custar mais caro…. e ainda vai prevenir acidentes, evitando mais pessoas com deficiência.
AAI Digital – Considerando a prerrogativa de garantir autonomia, conforto e segurança, pode-se dizer que os projetos devem, basicamente, atentar para o desenho das calçadas, acessos, sinalização visual e tátil, sanitários, balcão de atendimento, vagas e rotas acessíveis?
Arq. Liane – Conforme respostas anteriores, sim! Além de vagas de estacionamento próximas aos acessos.
AAI Digital – O Poder Público pode exigir um laudo técnico e ou certificado de acessibilidade para comprovar as adaptações exigidas e parâmetros determinados pela legislação. O que é esse certificado e como obtê-lo?
Arq. Liane – O certificado de acessibilidade é a análise e a verificação de edificações e ambientes existentes para atestar e comprovar a acessibilidade ampla e total ou parcial, em atendimento à legislação vigente. A elaboração deste certificado é feita por meio de levantamento no local com inspeções visuais, medições das condições atuais e reais.
Já o laudo técnico é um relatório com o objetivo de definir e avaliar as condições físicas de acessibilidade das áreas ou ambientes e orientar sobre as barreiras arquitetônicas e suas possíveis
soluções para a acessibilidade de acordo com as leis e normas vigentes. São analisadas as áreas comuns, acessos, circulações, estacionamentos, sanitários, layout, elevadores, dispositivos de
comando e iluminação; escadas, rampas, corrimãos e guarda corpos; sinalização visual, tátil e sonora, passeios públicos e rota acessível. O certificado e o laudo técnico devem ser elaborados por profissional competente, habilitado e que possa fornecer RRT ou ART.
* Liane Lautert Etcheverry é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Unisinos, em 1980, e pós-graduada em Arquitetura de Interiores pela UniRitter, em 2001. Desde 1992, atua em escritório próprio, em Porto Alegre, no desenvolvimento de projetos arquitetônicos e de Arquitetura de Interiores residenciais, projetos de arquitetura de interiores residenciais e comerciais e assessoria e consultoria em Acessibilidade, Laudos e certificados em acessibilidade arquitetônica. Liane participou de cursos específicos sobre Acessibilidade Arquitetônica. E entre 1998 e 2004, participou da Comissão Permanente de Acessibilidade de Porto Alegre (CPA), como representante do IAB-RS e da AAI Brasil/RS, entidade da qual é associada e já participou da diretoria (2004-2005).